segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Não tinha mais medo do câncer, tinha medo dele roubar meu sonho de engravidar

Não sei se porque já faz tanto tempo, não sei se porque tanta coisa boa já aconteceu depois, não sei se porque nesses vinte anos essa doença se tornou 'corriqueira', enfim, não sei por que mecanismo aconteceu, mas o fato é que há muito tempo não pensava no meu câncer. E pensar nele para escrever esse depoimento para o outubro rosa trouxe um misto de sensações difícil de desembaraçar e colocar no papel... porque a intenção é que seja um alerta e, portanto, tenha alguma informação, mas o difícil é conseguir ser objetiva quando tantos sentimentos fizeram e fazem parte dessa história. Medo, dor, raiva, negação, persistência, superação... bóra tentar.

Aos 27 anos, eu achava que conhecia bem o câncer. Já tinha visto ou ficado sabendo de algumas pessoas enfrentando o desgraçado e, particularmente, assistia uma das pessoas que mais amei na vida começando a sucumbir a ele depois de 11 anos de luta - que continuaria por pouco mais de um ano. Foi um ano terrível aquele 96. Começou com a perda de um sobrinho nascido prematuro, a crise e posterior morte de um primo irmão querido, e o início do sofrimento de quase duas décadas da minha sogra depois de um aneurisma cerebral rompido.

No meio disso tudo, um caroço na mama esquerda, detectado num auto exame que eu, com antecedente familiar relevante, fazia desde sempre. Meu ginecologista na época me tranquilizou: "Ah, vocês mocinhas querem ter peito durinho mas não querem ter displasia, isso não é nada!". E sinceramente não achei que fosse nada. Era muita coisa ruim acontecendo, nem me passou nada ruim pela cabeça.



Por sorte, eu estava para completar 2 anos de casada e começava a pensar em gravidez. Então o mesmo médico concluiu que a retirada cirúrgica era o melhor a fazer, pois tratar com medicamentos seria mais demorado. Pediu que eu fizesse um ultrassom das mama, como este não acusou nada, marcou uma pequena cirurgia para retirada do nódulo.

ERRO NÚMERO UM: Nunca, jamais se deve pensar em tratamento de um nódulo nas mamas antes de uma mamografia. Básico, mas ainda ignorado por muitas mulheres e, no meu caso, pelo próprio médico, que não teve a humildade de me encaminhar a um mastologista, esse sim profissional capacitado para lidar com a questão.

Cirurgia feita sem complicações, alta no mesmo dia, tudo ok, visita ao consultório marcada para uma semana depois para retirada dos pontos...só que tinha um câncer no meio do caminho. O resultado da biópsia - obrigatória em qualquer nódulo retirado - dois dias depois, mostrava um carcinoma colóide. "Prazer"em conhecer, Paula.

Aqui apareceu junto o ERRO NÚMERO DOIS, que foi a retirada do nódulo sem a presença de um patologista que fizesse a biópsia durante o procedimento (caso o câncer houvesse sido detectado na hora não teria sido necessária uma segunda cirurgia às pressas) pois...

ERRO NÚMERO TRÊS, a retirada de um câncer, sem deixar margem de segurança e com presença de sangramento e secreções comuns a um procedimento cirúrgico aumenta bastante a chance das células malignas se espalharem pelo organismo.

Na ligação telefônica que fez para minha mãe, o médico pintou o pior dos panoramas. Disse que o câncer não dava uma segunda chance de cura, que eu precisava operar imediatamente e fazer uma mastectomia total, sem possibilidade de reconstituição da mama em menos de 5 anos, que faria radioterapia, quimioterapia, que o tumor que eu tinha era extremamente agressivo, enfim, praticamente me assinou um atestado de óbito. Desespero total.

Felizmente minha mãe teve a calma necessária para ligar para um primo médico e pedir orientação. Lindo e brilhante profissional que é, ele nos disse que não era a especialidade dele, mas pelo que ele sabia desse tipo de tumor a coisa não era tão feia quanto descrita pelo GO, que nesse tipo de tumor nem se usava quimioterapia e outras informações mas que, antes de tudo, eu tinha que consultar um especialista, um mastologista.

Consultamos. Felizmente, ele rasgou o atestado de óbito que o outro tinha assinado. Pediu uma nova biópsia, mais detalhada. Disse que eu ficasse tranquila porque, dentro do 'ruim' que era o fato de ser um câncer, eu tinha tudo de bom: o tumor não era de forma alguma dos mais agressivos, a localização era das melhores para retirada cirúrgica (quadrante supero-lateral), o tumor era bem limitado, se não me engano o termo era 'encapsulado', o que diminuía a área de segurança a ser retirada, enfim, me deu uma luz.

O tratamento, além da quadrantectomia (retirada do quadrante afetado da mama) incluía radioterapia, mas excluía a temida quimioterapia. Na mesma cirurgia, um cirurgião plástico já fez a redução da outra mama, algo bem distante do panorama de ficar sem uma mama e sem perspectiva de reconstituição que tinha sido apresentado pelo GO. Junte isso a não ter que perder os cabelos e imagine o alívio para uma menina de 27 anos e recém casada... pode parecer fútil, mas juro que não é. É impressionante como se agarrar às coisas boas, por mais banais que elas sejam, ajuda.

Foi fácil? Não. O pós cirúrgico foi bem chato, aqueles drenos foram um pesadelo (e olha que tem gente que faz por estética...risos). A radioterapia foi terrível. As queimaduras foram suportáveis, mas a sensação naquela sala de espera, semana após semana, era de morte. Aquele subsolo, aquelas dezenas de placas de sinalização com aquela caveira e outras dezenas com o símbolo de radioatividade me perseguem até hoje.

Por outro lado, vi tantos casos tristes passarem por ali que de certa forma me fortaleci para enfrentar o resto. Foram mais dois anos de tamoxifeno, minha "quimio light" e meu pesadelo. Eu queria ser mãe, ora essa, como podia ter que tomar aquele veneno? Me lembrava das crianças que conhecera naquela sala de espera e rezava...rezava por elas, e para que meu sacrifício pudesse livrar meus filhos desse horror.

Ah, a maternidade...sonho e projeto que me manteve em pé durante aquilo tudo. Porque o GO, aquele lá do começo, tinha dito que "eu esquecesse de ter filhos", e ali sim eu quis morrer. E quando ouvi do mastologista que não, que eu era muito jovem e que se quisesse teria sim filhos depois do tratamento, renasci. Trato feito com o Papai do céu: levar aquela prova até o fim e da melhor maneira, para ter meus bebês saudáveis depois.Trato feito, trato cumprido. 

Dois anos depois do câncer, dois anos depois da radio e dois anos tomando o tamoxifeno, ouvi do meu médico (novo GO, que acompanhou e deu prosseguimento ao meu tratamento) que ele tinha reunido uma junta médica para discutir meu caso e que, na conclusão, ele me liberava para tentar a gravidez, pois tinha mais medo que eu arrumasse outro câncer se ele não liberasse...rs... essa última fala dele foi brincando, mas acho que passa a ideia do que foram aqueles dois anos, de qual era a minha preocupação. Não tinha mais medo do câncer, só tinha medo dele roubar meu sonho.

Muitos médicos com quem conversei depois ficaram chocados, disseram que foi uma 'temeridade', um risco muito grande. Discordo. Meu trato estava feito e não tinha volta... parei o tamoxifeno em agosto, em outubro estava grávida.

Vinte anos se passaram. Hoje tenho 47, uma filha linda de 17 e outra filha linda de 10 anos, minha raspinha do tacho. Parando para pensar em tudo isso, às vezes tenho a impressão de que foi em outra vida, com outra pessoa. Tanta informação básica que eu não tinha, tanto sofrimento desnecessário... o que tenho a dizer é: meninas, se cuidem, se toquem, se conheçam. SE INFORMEM SEMPRE E MUITO! Se notarem algo estranho como caroços, vermelhidão, secreção nas mamas, procurem um mastologista. Perguntem. Mas perguntem muito. Estão satisfeitas, confiaram? Ok. Não? Procurem outro médico, e outro, e outro se for preciso.

E se o câncer aparecer, tenham força e fé de que podem vencê-lo, por mais duro e difícil que seja. A gente só não pode é se entregar. De resto, tenho também a certeza de que até os erros foram para o melhor: imagina se aquele médico lá do começo tivesse tido um patologista no centro cirúrgico? Eu ia ter entrado em cirurgia para retirar uma displasia e teria acordado com câncer, sem a mama e sei lá mais o que. Que bom que ele errou! Que bom que eu acreditei que ia dar tudo certo.

Paula Pacheco
Mãe de duas filhas, pós tratamento de câncer.

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