sábado, 1 de outubro de 2016

Minha mãe bipolar e suas escolhas imprevisíveis

Até hoje, quando penso na minha mãe, junto com todas as lembranças, vem um sentimento de culpa por não ter feito algo além para salvá-la disso. Fato é que, no último ano, eu e minhas irmãs discutíamos frequentemente para ver quem iria visitá-la na clínica de cuidados psiquiátricos. Era triste, era distante e sempre tínhamos outros compromissos familiares e sociais muito mais interessantes para o final de semana.

Mas, a verdade é que estivemos distantes por toda uma vida. Ainda casada com o meu pai, vivíamos em um ambiente conturbado pelas brigas constantes e algumas, inclusive, com a presença de polícia para apaziguar os ânimos. A impressão é que ela fazia de tudo para infernizá-lo, creio que como forma de dar o troco por algum mal comportamento dele. Era nítido seu descontrole. Lembro ter muito medo dela.



Certa vez, brincando com a minha irmã mais nova no balanço, tive a ideia de passar por baixo enquanto o brinquedo estava no alto, eu caí e o balanço veio direto meu rosto. Tive que mentir para ela porque tinha medo de apanhar mesmo com o rosto inchado e sangrando. Suas reações eram imprevisíveis.

Quando eu tinha 5 anos eles se separaram. Após a separação, os sinais de que algo estava errado foram se agravando. Veio o descontrole financeiro, ela perdeu o apartamento que comprou com partilha de bens e, em seguida, perdeu o emprego já não conseguindo mais arcar com as dívidas do cartão de crédito.

O descontrole emocional também se acentuou. Passou por um segundo casamento frustrado, e – recordo agora - namorou um cara que, certo dia, encontramos deitado, bêbado, na frente da entrada do nosso prédio. Depois, foi morar no interior, numa casa que tenho ótimas lembranças... mas a fase boa durou pouco e logo vieram novas crises. Sentíamos que ela não estava mesmo feliz, talvez porque ainda estivesse presa ao passado.

Então, quando eu tinha 9 anos, ela foi embora para a Espanha em busca de um recomeço de vida - sem a gente. Durante quase 30 anos vivendo na Europa, recebíamos cartas quase toda semana e, às vezes, uma caixa com presentes. Ficávamos felizes com as novidades. Esta era a forma que ela encontrava para compensar o fato de ter nos deixado com a sua mãe, que tinha poucos recursos e se esforçava muito para conseguir criar sozinha três meninas de 6, 9 e 12 anos num apartamento alugado num bairro simples da zona norte de SP.

Porém, de tempos em tempos, ela tinha suas crises e era notório, mesmo com a distância, que isto acontecia, pois o sentimento de culpa se refletia em inúmeras chamadas telefônicas que recebíamos, mesmo sabendo que era muito caro fazer uma ligação internacional.

Nestes altos e baixos, minha mãe retornou da Espanha por duas vezes pela Cruz Vermelha, através do consulado do Brasil. Em uma dessas vezes, eles a pegaram nas ruas. Ela chegou sem nada, somente com a roupa do corpo (que dava para ver que não era dela) porque havia perdido tudo mais uma vez. Sua aparência era péssima, aparentava pelo menos uns 20 anos a mais.

Por sorte, tínhamos as primas dela que ajudavam. Uma delas conseguiu vaga em uma clínica municipal e, com isto, ela passou a receber os cuidados especiais que precisava. Foram meses e meses de tratamento, consultas, doses de remédios controlados até que tivemos que assinar um termo consentindo o tratamento de eletrochoque para tentar reanima-la. Fomos convencidos pelos médicos que esta era a melhor solução, e parecia que foi, porque dias depois ela reagiu e recebeu alta.

Contudo, logo a ansiedade tomou conta, ela não suportava ficar no Brasil e fez de tudo para voltar para sua vida na Espanha. No começo ficamos tristes, mas, depois, lembro que meu sentimento era de alívio porque sentia que seria menos um problema para nos preocuparmos.

Em seu último retorno ao Brasil, foi enviada pelo seu namorado espanhol de anos. Ele nos ligou dizendo que não suportava mais cuidar dela e logo estávamos, eu e minhas irmãs, mais uma vez, na frente do saguão de desembarque do aeroporto. Na expectativa de encontrar alguém que volta de viagem, olhávamos atentamente todos que passavam, e chega então uma senhora de cabeça toda branca, cabelos curtos, magra, com dificuldade de andar e com o rosto profundamente triste. Era minha mãe. Depois de tantos anos, estava irreconhecível.

E a nossa saga com os tratamentos retomaram até culminar em uma complicação maior em seu intestino. Após uma infecção generalizada causada por uma perfuração no intestino, pós-cirurgia, ela veio a falecer.

Relembrando agora a nossa história, chego a conclusão que ela sempre precisou de ajuda, mas, naquela época, quando tudo começou, nem sabíamos o que era Transtorno Bipolar. Hoje, olhando pra traz, vejo bem claro todas as evidências dessa doença na sua trajetória.

E eu, que jurava que as pessoas traçavam seu destino unicamente baseado em suas escolhas, tenho que afirmar que essa, certamente, não foi uma escolha que ela fez. Infelizmente, o Transtorno Bipolar pode acontecer com qualquer um, inclusive, comigo e com você.

Sandra Del Amonica
Filha de Marizilda

O Transtorno Bipolar:

É uma doença que se caracteriza pela alternância de humor: ora ocorrem episódios de euforia (mania), ora de depressão, com períodos intercalados de normalidade. Com o passar dos anos os episódios repetem-se com intervalos menores, havendo variações e existindo até casos em que a pessoa tem apenas um episódio de mania ou depressão durante a vida. Apesar de o Transtorno Bipolar do Humor nem sempre ser facilmente identificado, existem evidências de que fatores genéticos possam influenciar o aparecimento da doença.

Saiba mais sobre a doença:
http://drauziovarella.com.br/letras/t/transtorno-bipolar/

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